sexta-feira, 23 de abril de 2010

Série Thânatos, Montez Magno
Acrílica s/ tela 147,5 149 cm
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sobretudos

O homem chega em casa. Tira o casaco, tira a blusa, tira a camiseta térmica, tira a casca – e fica nu, o homem. Se despe, até ficar só um caroço, só a semente, semente que brota e dá vida e vive como outras formas lindas, árvores frondosas e complexas, compostas por galhos retorcidos e folhas esmeramente contornadas. O homem, quando chega em casa, vira uma semente que brota. Aí, então, ele tem que sair. A vida é difícil, e todos sabem disso. E ele coloca a casca, a camiseta térmica, a blusa, o casaco: o-r-d-e-n-a-d-a-m-e-n-t-e. E fica embalado como um produto na prateleira, produto que tem valor calórico, peso líquido e bruto, produto que tem uma alma, uma idade, um estilo. O homem, quando sai de casa, vira aquele produto de prateleira. A semente está ali dentro, escondida bem no fundo da embalagem, sufocada, asfixiada, pronta para um ataque cardíaco. A semente não brota assim. Alguém já viu semente brotar sem ar? E aí o homem vira só um produto.

Tiro tudo, tiro roupa, tiro casca, cheguei em casa, ufa! Como uma cadeira de balanço, pode ser a da vovó, me sinto mais verdadeira sem as almofadas, sem a estampa das almofadas – me sinto mais verdadeira só com a minha estrutura. O meu eu eu eu eu. Verdadeiríssimo eu. Só a estrutura, esta é a verdadeira cadeira de balanço. Quando saio de casa, é almofada, capa pra almofada e tantas tantas outras coisas que eu me perco de mim, que eu não sei quem sou, quem aparento ser, como quero aparentar ser para quem vai sentar em mim, para quem quiser me comprar quando eu me transformar em um produto, assim que eu sair de casa. E fico desesperada pra voltar ao âmago de mim, à minha casa, onde eu possa, sozinha, voltar a ser uma semente, uma só estrutura, longe das capas que escondem a semente que brota, só com ar, só com ar, já disse.

O homem chega em casa. Vira uma só estrutura. Uma semente que brota, que dá vida e vive uma forma linda, mas complexa, dolorida, como os galhos retorcidos de uma árvore. O homem chega em casa e chora e ri e se sente sozinho e se engana, porque uma companhia existe, como o pratinho que vive ao lado da cadeira de balanço da vovó. A companhia existe, ela é certa, mais material do que aparenta. A companhia é a vida quando perde o seu fio, a indesejada das gentes, aquilo que persegue a semente do homem com ou sem sobretudos.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

um poente

escuta três tiros.

e continua na sua atividade habitual: às quatro horas, sol se pondo, vai à padaria, comprar o pão nosso de cada dia. quentinho, saído da fornalha. pão macio pra morder, um afago, um conforto depois de um dia meio atabalhoado. leva o saco habitualmente. e escuta três tiros. recife é assim, cidade violenta, a tendência é piorar mesmo.

abre o portão da casa antiga, uma herança. pensa no pão com manteiga, café pra acompanhar. vai à cozinha. olha o corredor.

a vermelhidão se espelha, se contorce o peito vermelho do filho amado, antes branco, agora vermelho. um vermelho meio amarelado, misturado – não se sabe se com o amarelo da manteiga ou o plasma. corredor estreito. lá no meio, um corpo estirado. irreconhecível seu filho.

que fazer? que dizer? como unir o sentimento macio do pão com o ferro do sangue? sangue de filho?

recife é assim, cidade violenta, a tendência é piorar mesmo. é o amarelo da manteiga e o vermelho do sangue que se misturam, em um tão doloroso poente.




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Algo realmente doloroso aconteceu esta semana. Pra quem pretende “experimentar” coisas novas, pensem duas, três, dez vezes. Crack não é mole, não “abre a cabeça”, nem leva ninguém pra frente. Cuidem-se.
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seja herói

quero quase sempre, hoje, dia vazio, sem causa nem finalidade, ser invisível pra mim. capa de invisibilidade não resolveria. existe alguma interna? talvez remédio pra dormir. suicídio, não. suicídio é um terreno pra corajosos, heróis. a covardia tá na Terra, batendo boca, reclamando da vida como eu reclamo – e pergunto pra quê ela existe – agora. covardia é não ver propósito em tudo, é não decidir se matar. revólver, não. veneno. já viram coisa mais chique que se matar com veneno? mas barbitúricos, não voilá. covarde sou eu. quem foi que disse que existir é pros fortes? existir é pros fracos. os fortes já morreram, já tomaram seus barbitúricos, sua overdose, tuberculose. coisa mais chique é morrer tuberculoso, com um cigarro na boca. isso é que é classe. e eu aqui. e você aqui. esperando morrer com câncer, parada cardíaca, atropelamento. coisa mais pobre é morrer de atropelamento. só me lembro de Macabéa e a sua estrela que brilhou uma vez na vida, finalmente. esse é o nosso destino, morrer e ter, finalmente, uma hora de estrela. isso não é heróico. heróico é morrer cedo – e de veneno ou tuberculose. que seja. a covardia está aqui. vocês vão ler este texto, se ocupar em outra tarefa e outra e outra e outra e outra, preenchendo o vazio onde deveria estar um comprimido. tome barbitúricos, seja herói. vou pra covardia dos meus dias e adeus.