"É de sonho e de pó
o destino de um só
feito eu perdido
em pensamentos
sobre o meu cavalo"
(Romaria - Renato Teixeira)
"Pelo menos eu tenho um sonho", ele disse. "O quê?!", o outro perguntou. O barulho estava muito alto, a chuva não parava, sem tréguas, eles precisavam de silêncio para se ouvirem. "PELO MENOS EU TENHO UM SONHO", falou mais alto - precisava quase gritar para ser ouvido. "NÃO ENTENDI, VOCÊ PODE REPETIR?". O que tinha pelo menos um sonho pegou a mão do que não escutava nada, a chuva não dava tréguas, pegou a mão do que não escutava nada pelos dedos, rapidamente, bruscamente, apontou a palma da mão do que não escutava nada e disse: "isso é pó". Ele escutou. O que não escutava nada escutou o que o outro dizia."Isso é pó", "isso é pó"... Um eco ressoava continuamente. O que significava aquele homem na sua frente, que surgiu do nada, da chuva, daquela outra rua que não se vê, porque chove, o que significava aquele homem que dizia que o seu corpo era pó?. "Isso é pó e pelo menos eu tenho um sonho", ele arrematou o eco. O do sonho sabia como se fazer ouvido: falou do pó, o pó que não queremos lembrar, o pó que deprime, que seca, o pó que não alimenta, o pó. Ele se fez ouvido. "E o que tem que sou pó? Você também é pó. Todos somos pó". Ele precisava reagir. Isso era uma ofensa! "Eu sou pó, mas pelo menos eu tenho um sonho. Você só tem cara de pó". Aquilo foi uma tapa na cara. Ele sabia disso, ele sabia que o trabalho de varrer o quarto, a sala e o banheiro três vezes, quatro vezes ao dia, era inútil. Ele varria tudo e, logo depois, pó nos cantos, pó nos móveis, pó no centro de cada aposento. O pó! Só o pó! Ele ficou imaginando se o pó já tinha atingido o centro do seu rosto... Ele tinha cara de pó? O silêncio pairava e ele pensava e pensava e o outro estava ali, do outro lado do seu rosto, esperando uma resposta com um rosto amável. Não, não era um rosto ameaçador, ele não queria ferir, ele não queria atingir, ele queria, talvez, dizer que precisamos nos preencher de sonhos, que só os sonhos fariam com que amássemos o pó, que aceitássemos o pó como uma parte intrínseca de nós mesmos, só os sonhos, só os sonhos... Eco... Só os sonhos... "Você precisa de um sonho, homem!". Silêncio. O que dizer para aquele homem absolutamente estranho que veio de uma rua nebulosa para dizer que ele, sim, ele, pelo menos tinha um sonho? "Eu preciso tocar o seu rosto", disse subitamente. Tocar o rosto... Por que tocar o rosto? Os sonhos, afinal, poderiam ser transmitidos pelo toque?
Ele tocou o rosto do outro com a ponta do indicador. "Você tem traços da vida", disse. "Eu fiz o que você não fez: descasei, joguei, investi, desisti", disse o outro, sério e bonito. "Acho que você tem coragem. Ou sorte", respondeu agora desenhando o rosto. "Se há sorte, eu não sei. Nunca vi". E a chuva, de repente, ficou mais fina.