quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sonhos III


"É de sonho e de pó
o destino de um só
feito eu perdido
em pensamentos
sobre o meu cavalo"


(Romaria - Renato Teixeira)


"Pelo menos eu tenho um sonho", ele disse. "O quê?!", o outro perguntou. O barulho estava muito alto, a chuva não parava, sem tréguas, eles precisavam de silêncio para se ouvirem. "PELO MENOS EU TENHO UM SONHO", falou mais alto - precisava quase gritar para ser ouvido. "NÃO ENTENDI, VOCÊ PODE REPETIR?". O que tinha pelo menos um sonho pegou a mão do que não escutava nada, a chuva não dava tréguas, pegou a mão do que não escutava nada pelos dedos, rapidamente, bruscamente, apontou a palma da mão do que não escutava nada e disse: "isso é pó". Ele escutou. O que não escutava nada escutou o que o outro dizia."Isso é pó", "isso é pó"... Um eco ressoava continuamente. O que significava aquele homem na sua frente, que surgiu do nada, da chuva, daquela outra rua que não se vê, porque chove, o que significava aquele homem que dizia que o seu corpo era pó?. "Isso é pó e pelo menos eu tenho um sonho", ele arrematou o eco. O do sonho sabia como se fazer ouvido: falou do pó, o pó que não queremos lembrar, o pó que deprime, que seca, o pó que não alimenta, o pó. Ele se fez ouvido. "E o que tem que sou pó? Você também é pó. Todos somos pó". Ele precisava reagir. Isso era uma ofensa! "Eu sou pó, mas pelo menos eu tenho um sonho. Você só tem cara de pó". Aquilo foi uma tapa na cara. Ele sabia disso, ele sabia que o trabalho de varrer o quarto, a sala e o banheiro três vezes, quatro vezes ao dia, era inútil. Ele varria tudo e, logo depois, pó nos cantos, pó nos móveis, pó no centro de cada aposento. O pó! Só o pó! Ele ficou imaginando se o pó já tinha atingido o centro do seu rosto... Ele tinha cara de pó? O silêncio pairava e ele pensava e pensava e o outro estava ali, do outro lado do seu rosto, esperando uma resposta com um rosto amável. Não, não era um rosto ameaçador, ele não queria ferir, ele não queria atingir, ele queria, talvez, dizer que precisamos nos preencher de sonhos, que só os sonhos fariam com que amássemos o pó, que aceitássemos o pó como uma parte intrínseca de nós mesmos, só os sonhos, só os sonhos... Eco... Só os sonhos... "Você precisa de um sonho, homem!". Silêncio. O que dizer para aquele homem absolutamente estranho que veio de uma rua nebulosa para dizer que ele, sim, ele, pelo menos tinha um sonho? "Eu preciso tocar o seu rosto", disse subitamente. Tocar o rosto... Por que tocar o rosto? Os sonhos, afinal, poderiam ser transmitidos pelo toque?


Ele tocou o rosto do outro com a ponta do indicador. "Você tem traços da vida", disse. "Eu fiz o que você não fez: descasei, joguei, investi, desisti", disse o outro, sério e bonito. "Acho que você tem coragem. Ou sorte", respondeu agora desenhando o rosto. "Se há sorte, eu não sei. Nunca vi". E a chuva, de repente, ficou mais fina.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Os sonhos II

"Você terá encontrado um impulso outro, que antes de te empurrar, conversará com você, te entenderá e concordará que o repouso é um movimento calmo, no compasso das ondas de Debussy" J.C.


Eu prometo que, se você não me empurrar agora, eu te darei alguns desenhos nas nuvens, um gramado bem verde, mensagens no celular, quando eu tiver vontade, é claro, porque essas coisas só se faz com vontade. Eu te darei algumas risadas todos os dias, serei a tua melhor amiga, algo como "o meu melhor amigo é o meu amor", eu te darei meu quarto, um frio na barriga, um calor no corpo, luz, você sabe a cor da luz de que falo. Se você não me empurrar, conversar comigo, me entender, você vai concordar que precisamos de um repouso, de um movimento calmo, para digerir o turbilhão salgado pelo qual passamos há pouco tempo, não é? Eu preciso tanto tanto que você não me empurre agora, eu preciso tanto tanto saber que não posso te empurrar agora, porque têm os sonhos, e não sei se você já conseguiu se desvencilhar deles, mas eu ainda não consegui. Ainda preciso aprender a guardar o cheiro dos meus sonhos com o carinho do que poderia se realizar no futuro longíquo, mas não se realizou por um motivo superior, que, confesso novamente, ainda não sei explicar. Não posso guardar os cheiros dos meus sonhos com o pesar da imaterialidade, utopicidade e irrealidade dos sonhos. Não quero, não posso, não devo acreditar que os sonhos são só sonhos, já conversamos sobre isso, você sabe. Mas a ressaca tá passando, o turbilhão salgado está se acalmando, você sabe disso, você sabe que tudo está mais pra Debussy que pra Bethoven, você sabe. Em Debussy, eu poderei construir um novo barco, uma nova bandeira e uma nova rota que nos leve para uma ilha de sonhos renovados e, quando chegarmos nesta ilha, aí, sim, você pode me empurrar.

Obs.: J.C., você escreve coisas bonitas.

Os sonhos I


Quem nunca ouviu a expressão "fio da vida"? Quem ainda acredita que ele existe? Às vezes eu fico procurando este tal fio, que deve guiar a todos a uma existência ordenada, bem explicadinha, bonitinha, in black and white. Cadê? Fio da vida, cadê você? Eu até que tinha um fio, um algo que me guiava, que me levava a essa existência paradisíaca - um pouco previsível, é fato, mas tudo tem um preço, não é? O preço da segurança, evidentemente, tinha que ser um pouco alto. Eu tinha esse fio da vida, feito de ouro, que me levava para os meus sonhos, uma casa grande, com cachorro, dois filhos, no máximo, algumas pinturas na parede, visitas ali, acolá, de amigos queridos, saudosos, sonhos bonitos, previsíveis, já disse, mas ainda bonitos. E os sonhos se apegaram, se colaram em mim e, de repente, cadê, fio da vida, cadê você? O carretel, ontem, caiu em um abismo que, confesso, não sei de onde veio, por que veio, para onde vai, o abismo, para onde vai o abismo para onde vai? Não sei. O carretel caiu dentro dos meus pensamentos e o abismo está aqui, comigo, no lugar do carretel. O carretel foi embora, mas os sonhos, ah, os sonhos, ainda não consigo me desvencilhar deles.