sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Jogando amarelinha



O Jogo da Amarelinha é um livro, mas também pode ser um jogo, um exercício de pensamento, um verdadeiro estica-estica da mente - a abertura de horizontes. Não pretendo, aqui, resenhá-lo, colocar em pauta as minhas impressões ou fazer uma crítica jornalística, humorística ou amadora sobre qualquer coisa. Só digo que o Jogo é uma semente que germina aos poucos, um pouco hoje, amanhã e depois, quando se formará uma flor bela, talvez exótica, talvez caleidoscópica, mas ainda flor. Resumindo: o livro de Cortázar foi feito para ser lido várias vezes, por ser sobre e para a vida, por alimentar a sementinha que cresce depois de cada leitura apaixonante e apaixonada. Adendo: é para ser lido com um lápis na mão. Finalizando: quem sabe, aos 60 anos, você terá um livro todo grafado, mostrando que todas as partes são importantes, lindas e singelas. Quem sabe você queira pintar o seu quarto com as palavras imortais do gênio, sensível Cortázar.

Aqui estão as palavras grafados pelo meu lápis que grafou as palavras apaixonadas pela leitura apaixonante:

“Como você não sabia dissimular, descobri quase imediatamente que, para vê-la como eu queria, era necessário começar por fechar os olhos e, então, surgiam coisas, primeiro como estrelas amarelas (movendo-se como geléia de pêssego), depois como cachoeiras vermelhas de jovialidade e das horas, ingresso paulatino num mundo-Maga que era a falta de jeito e a confusão, mas também levando a assinatura da aranha Klee, do circo Miró, dos espelhos cinzentos Vieira da Silva, num mundo onde você se movia como um cavalo xadrez que se movesse como uma torre que se movesse como um bispo. E, então, nesses dias, íamos ao cineclube ver filmes mudos, já que eu, com a minha cultura, não é verdade? e você, infeliz, não entendia absolutamente nada dessa estridência amarela, convulsa, anterior ao seu nascimento, essa emulsão estriada onde corriam os mortos;”.

The Goldfish, Paul Klee
“Trazia-me sempre uma flor, um cartão postal de Klee ou de Miró e, quando não tinha dinheiro, escolhia uma folha de plátano no parque”.

“[...] eu me sentia antagonicamente perto da Maga, desejando-nos um ao outro numa dialética de íma e limalha, de ataque e defesa, de bola e parede”.


“Abraçado com a Maga, essa solidificação de nebulosa, penso que faz tanto sentido fazer um bonequinho com miolo de pão quanto escrever o romance que nunca escreverei ou defender com a vida as idéias que redimem os povos”.


“Sair, fazer, pôr em dia, não eram coisas que o ajudavam a adormecer. Pôr em dia. Que raio de expressão! Fazer. Fazer algo, fazer o bem, fazer xixi, fazer hora: a ação em todas as suas complicações. Contudo, por trás de toda e qualquer ação, havia sempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, ou mover algo para que ficasse aqui e não ali, [...] o que significava que em qualquer ato havia sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito e que era possível fazer”.


“Era como se a espécie protegesse o indivíduo para não o deixar avançar demais pelo caminho da tolerância, pela dúvida inteligente, pelo vaivém sentimental. Em dado momento, surge sempre o endurecimento, a esclerose, a definição: negro ou branco, radical ou conservador, homossexual ou heterossexual, figurativo ou abstrato, San Lorenzo ou Boca Juniors, carne ou legumes, os negócios ou a poesia”.


“- Temos de acordar – dizia Oliveira, de vez em quando.
- Para quê? - respondia a Maga, olhando as barcas que passavam sob o Pont Neuf – Toc, toc, você tem um passarinho na cabeça. Toc, toc! Ele está lhe bicando o tempo todo. Quer que você lhe dê comida argentina. Toc, toc.
- Está bem – resmungava Oliveira. – Não me confunda com Rocamadour. Ainda vamos acabar falando essa linguagem de neném com o quitandeiro ou a porteira, vai ser uma complicação espantosa.”.

“aqui, tudo respira, um contato perdido se restabelece; a música ajuda, a vodca e a amizade também... Essas sombras nos cantos: o quarto tem pulmões, algo palpita”.

“Os intercessores, uma irrealidade nos mostrando outra, da mesma forma como os santos pintados mostram o céu com o dedo. Não é possível que isto exista, que estejamos verdadeiramente aqui, que eu seja alguém que se chama Horacio. Esse fantasma aí, essa voz de uma negra que morreu há vinte anos num acidente de automóvel: elos de uma corrente inexistente, como é possível que nos encontremos aqui, como podemos estar reunidos esta noite, a não ser por um mero jogo de ilusões, de regras aceitas e consentidas, de puro baralho nas mãos de um jogador inconcebível...”

“E nós estamos tão tristes, Horacio, porque tudo isto é tão bonito”.

“O jazz é como um pássaro que migra ou emigra, que imigra ou transmigra, saltador de barreiras, contrabandista, algo que corre, que se difunde, e esta noite, em Viena, está cantando Ella Fitzgerald, enquanto, em Paris, Kenny Clarke inaugura uma cave [...] em Birmingham, em Varsóvia, em Milão, em Buenos Aires, em Genebra, no mundo inteiro, é inevitável, é a chuva e o pão e o sal, algo absolutamente indiferente aos ritos nacionais, às tradições invioláveis, ao idioma e ao folclore: uma nuvem sem fronteiras, um espião do ar [...], que reconcilia mexicanos e noruegueses e russos e espanhois, que os reincorpora ao obscuro fogo central já esquecido, que os devolve mal e precariamente a uma origem atraiçoada, indicando-lhes que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram não era o único e não era o melhor, ou que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram era o melhor, porém que talvez houvesse outros caminhos doces de caminhar e que eles não os tinham escolhido, ou que os tinham escolhido pela metade...”.

“A desordem triunfava e corria pelos quartos com o cabelo pendurado em mechas astrais, os olhos de vidro, as mãos cheias de cartas que nunca casavam, mensagens que faltavam as assinaturas e os timbres”.

“O problema estava em apreender a sua unidade sem ser um herói, sem ser um santo, sem ser um criminoso, sem ser um campeão de boxe, sem ser um mestre, sem ser um pastor. Apreender a unidade em plena pluralidade, que a unidade fosse como o vórtice de um turbilhão e não a sedimentação do mate, lavado e frio”.

“Na metade da grande desordem continuo achando que sou um cata-vento, no final de tanta voltas precisa indicar um norte, um sul”.

“Existem rios metafísicos, ela nada por elem como aquela andorinha está nadando pelo ar, girando alucinada, em torno do campanário, deixando-se cai para melhor levantar com o impulso. Eu descrevo e defino esses rios; ela nada por eles. Eu os procuro, os encontro, olho-os da ponte, e ela nada por eles. E, sem saber, igualzinha à andorinha. [...] Essa desordem é a sua ordem misteriosa”.

“Arranca esses olhos que olham sem ver, estou condenado sem apelo, pronto para esse cadafalso azul para onde me alçam as mãos da mulher cuidando do seu filho, pronta a sentença, pronta a ordem mentida de estar só e recuperar a suficiência, e a egociência, a consciência. E, com tanta ciência, uma inútil ânsia de ter pena de alguma coisa, de que chova aqui dentro, de que por fim comece a chover, a cheirar a terra, a coisas vivas, sim, finalmente, a coisas vivas”.

"’No fundo, poderíamos ser como na superfície’, pensou Oliveira, ‘mas teríamos de viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, sair de si mesmo com tal violência que o salto acabasse nos braços de outro. [...]’”

“E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais?”

“-Procure entender-me, estou apenas querendo dizer que ele anda em busca da luz negra, da chave, e começa a perceber que essas coisas não se encontram na biblioteca”.

“É como uma figura de tarô, algo que tem de resolver-se, um poliedro onde cada aresta e cada face tem o seu sentido imediato, o falso, até integrar o sentido mediato, a revelação”.

“A realidade precipita-se, mostra-se com toda a sua força e, então, a nossa única maneira de enfrentá-la consiste em renunciar à dialética, essa é a hora em que damos um tiro em alguém, em que pulamos do navio, em que tomamos um tubo de Gardenal, como Guy, em que libertamos o cachorro da sua corrente, em que fazemos qualquer coisa que nos ocorra. A razão só nos serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea. Todavia, essas crises são como demonstrações metafísicas, meu caro, um estado que, talvez, se não tivéssemos seguido pelo caminho da razão, seria o estado natural e corrente do pitecantropo ereto”.

“Maga, o molde vazio era eu, você tremia, pura e livre como uma chama, como um rio de mercúrio como o primeiro canto de um pássaro quando a madrugada surge, e é doce dizer-lhe isto com as palavras que a fascinavam, pois você não acreditava que essas palavras existissem fora dos poemas e que tivéssemos o direito de empregá-las. Onde estará você, onde estaremos nós, hoje, dois pontos num universo inexplicável, perto ou longe, dois pontos que criam uma linha, dois pontos que se afastam e se aproximam arbitrariamente [...], mas nós dois, Maga, apesar de tudo, estamos compondo uma figura, você um ponto em algum lugar, eu outro em algum lugar, deslocando-nos [...], e pouco a pouco, Maga, vamos compondo uma figura absurda, desenhamos com os nossos movimentos uma figura idêntica àquela que as moscas desenham quando esvoaçam num quarto, de cá pra lá [...], e tudo isso vai tecendo um desenho, uma figura, algo inexistente como você e como eu, como os dois pontos perdidos em Paris que vão de cá pra lá, de lá pra cá, fazendo o seu desenho, dançando para ninguém, nem para si mesmos, uma interminável figura sem sentido”.

“Uma pedrinha e a ponta de um sapato, aquilo que a Maga sabia perfeitamente e ele não tão bem, e o Clube mais ou menos bem, aquilo que, desde a infância em Burzaco ou nos subúrbios de Montevidéu mostrava o caminho certo para o Céu, sem necessidade de vedanta ou de zen ou de escatologias variadas, sim, chegar ao Céu a pontapés, chegar com a pedrinha (carregar a sua cruz? Esse artefato era pouco manejável) e, com um último pontapé, projetar a pedra contra o azul, o azul o azul o azul, plaf”

“para repetir no jogo da amarelinha a própria imagem do que acabavam de alcançar, a última casa, o centro da mandala, o Ygdrassil vertiginoso por onde se saía para uma praia aberta, para uma extensão sem limites, para o mundo debaixo das pálpebras que os olhos voltados para dentro reconheciam e acatavam”.

“Um dia meto um dedo no costume e é incrível como o dedo se afunda no costume e aparece do outro lado”

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

agora prismático

Eles estão espalhados aqui no meu quarto. O furacão é total, é constante, destrói a ordem (o que será a ordem senão o agora?), desestrutura os pilares e apenas deixam visíveis os restos, os fragmentos espalhados de uma memória outrora completa. Embaixo da cama, da cadeira, sobre o travesseiro, na própria pele: somente os espectros de um prisma que não se encontra, ou se encontra perdido no emaranhado da mente, diluído em outros prismas maiores, construídos pela mesma entidade biológica em diferentes estados de espírito. Está tudo espalhado, desorganizado, carente daquela inerente necessidade do ser humano de querer entender tudo, de catalogar, de saber o começo, o meio e o fim. Tá aqui na pele, no suor, no cheiro, a gente se carrega feito cruz, feito karma, a gente tem um mal de alz-heimer para o resto da vida, um mal que nos deixa como herança da vida vivida apenas os espectros de um prisma que já foi concreto no agora e que hoje se emaranha nas infinitas dobras de neurônios, axônios e dendritos, ou até nem mais exista. A verdade (ou inverdade consoladora? sentença fabricada por quem sempre quer saber o começo, o meio e o fim?) é que, após a bebedeira, a paisagem, o carro, o livro, o sexo, somos somente uma essência, um concreto mais fluido do que se imagina, um nada pretenso a tudo, uma interrogação constante e – talvez – eterna, se não houver o que chamamos de Deus, Entidade Superior ou vida-após-a-morte. Mas a vida enquanto vida está aí: os prismas estão no agora, que agora já é passado, e agora o prisma do passado já é espectro de prisma, porque somente quem não é humano consegue descrever os prismas como eles sempre foram, cada cateto, ângulo e inclinação. Ser humano mesmo esquece o prisma que já viveu, deixa o espectro tomar conta do quarto, da pele, do cheiro, e desse espectro ele se constrói, se torna um outro espectro maior, mas não menos fluido, não menos perecível e inconstante que o mais pequenino dos espectros de prisma.