segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sem convites para o banquete



Só posso falar de Bacantes e Banquete - as únicas duas peças a que assisti do roteiro dionisíaco de Zé Celso a Peixinhos. Bacantes é transcendental. O aspecto plástico da encenação nos leva aos primórdios do surgimento do teatro, as festas em exaltação ao deus Dionísio, o Baco dos romanos. Roupas, cenário, iluminação, (en)cantos presentes, bem elaborados na Oficina. Cheiro de incenso, tinha Bacantes, talvez para encantar (ou enganar) o fedorento real dos tempos pré-homéricos em que se viviam os verdadeiros bacanais. Banquete não fica atrás na espetacularização: muitas cores, batons vermelhos, cabelos grandes, pêlos pêlos, pênis. O texto, lindo - para quem conhecia, ou tinha, pelo menos, alguma intimidade com o discurso de Platão.


O fato é que, no meio de uma estética atraente e de um texto filosoficamente rico, algo se perde. As vozes sentenciais do texto passam a quase sussuros, vozes do inconciente, diante de um espaço enorme - o Nascedouro de Peixinhos - e das reações inesperadas de uma plateia que não compreendia o velhinho Zé Celso. O que é que ele queria, hein? Que pornografia era aquela? Que bacanal aberto era aquele que só tinha homens e mulheres atrantes, estas com cara de gozo e assumidamente no cio? O Teatro Oficina se despede, e a impressão que dá é que ele foi embora incompreendido. Os ingressos eram gratuitos, o local era Peixinhos e a comunidade regozijou-se. Nada pra fazer em casa, vamos lá ver gente nua. É uma pena. Culpa de Zé Celso, culpa da sociedade, de nós, que ríamos da "cafuçuzisse" dos peixinhos. "I hate cafuçú", essa era a frase que deveria ser escrita de batom nas costas de um dos atores, em Bacantes.

No meio da confusão geral, teve Dona Rosa, a nova popstar de Peixinhos, que primeiro recebeu risadas debochadas, em Bacantes, e, depois, aplausos entusiasmados, em Banquete. Teve o morenassço da comunidade, que ficou peladão com um copo de cerveja na mão, se sentindo em uma boate meio estranha, de gente branca, bonita, mas estranha; ele tava era gostando! Teve o que mais? A galera da Jovem, urrando de desejo quando uma mulher tirava a roupa e gritando de reprovação quando via dois homens se beijando. Que putaria era aquela, minha gente? Dois veados se beijando! Eca! Era assim. Um barril de pólvora, uma tensão social, um reflexo da sociedade de classes, essencialmente marginalizadora, que se via - mas ninguém pensava nisso. Nem Zé Celso, que humilhou os peixinhos, quando um deles pegou na sua bunda.

Pra mim, sinto só tristeza. Levei pra casa uma estética bela, nos olhos, uma música enternecedora, nos ouvidos, e uma angústia no coração. Foi o nu artístico que se transformou em pornografia pura, puta, graças aos peixinhos que Zé Celso, tão cabeça, fez questão de não convidar para o banquete.

domingo, 4 de julho de 2010

É o mar

"É o mar, é o mar, fé-fé, chororô..."

Muita terra, muita terra. Chão, léguas de terra à frente. Deu quase pra pensar que o planeta não era geoidal, como se dizia aos quatro cantos por aí. Muito bom. Terra pra se andar, terra pra se segurar. Terra de onde viemos, para onde vamos: a terra. Terra é de Virgem, terra é das virgens, que se melam sempre do profano, após o rompimento do que, um dia, já foi sagrado. Muita terra à frente, terra que segura os pés, que segura o corpo, por forças conhecidas: gravidade, atrito, normal, ação, reação. Aquilo que prende o homem à terra, que dá a ele o cheiro do conhecido, o sentimento seguro, nem lá, nem cá, nem sal, nem açúcar, nem pesadelo, nem sonho, talvez a paz que a terra dê, talvez o comodismo que a terra dá. A terra é uma ilusão, porque sempre vem o mar por aí.


E as léguas de terra à frente. Aquelas léguas de que falei, sim! Aquela que iludia o homem, que o fazia acreditar na planitude do planeta. A terra foi-se inundando. Lá de longe vinha a água, e vinha, e vinha se aproximando - inicialmente de forma lenta, para, em seguida, se acercar em uma velocidade incontrolável - a destruir todas as barragens e paisagens que um dia compuseram aquela imensa massa continental . E ela foi-se acercando, a água, e cercando a massa disforme, formando uma ilha. Uma ilha de mim, uma ilha cega, que não via respostas no mar misterioso e infinito, assim como não as via na terra interminável, que simulava a planitude do planeta. E era o mar, era o mar, que, apesar da fé e do chororô, tragou, engoliu e absorveu aquela pequena porção de areia, que, não, nunca teve o direito de ficar sozinha.

Pintura: Turner, Vapor numa Tempestade de Neve, 1842.