domingo, 16 de dezembro de 2007

Fantoches, somos movidos pelo instinto

Toda vez que eu leio alguma coisa que escrevi há algum tempo me sinto a pessoa mais idiota da face da Terra, talvez porque a cada minuto que passa algo muda dentro de cada um, você vive e vê que, cada pensamento seu pode ser explorado de forma muito mais profunda. Os acontecimentos sensibilizam muitos dos nossos conceitos, aparentemente imutáveis.
Antes de postar esse texto, li-o novamente, e me senti idiota. Acho que se hoje eu fosse escrevê-lo teria um pouco menos de revolta, e um pouco mais de equilíbrio pessoal, mas resolvi não alterar, pois perderia o sentido e a lógica do que eu vivia quando escrevi esse pequeno conto. Espero comentários. (sinceros, por favor, rsrs)
“[...]Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão.”

Fantoches – Francisco Espinhara

Fantoches I

Já era tarde, não o suficiente para tornar as ações humanas movidas somente a álcool e instinto, mas era o início da noitada que resultaria nesse fim. Encontravam-se alguns amigos. Com tudo combinado para a farra que aconteceria, esqueceriam as cobranças familiares durante a semana e reatariam as semelhanças ideológicas presentes entre eles e esquecidas durante o dia-a-dia cada vez mais corrido e curto.
Os bares, um dos plenos fornecedores da receita da felicidade, já estavam de portas-abertas, quase braços, para abrigar todos aqueles que se sentiam carentes de alienação, ou, simplesmente, de uma noite pra relaxar. Recife, naquela hora, era a residência dos jovens em busca de novas sensações e experiências transgressoras.

Luana foi a primeira a chegar ao local combinado, uma estreita rua de paralelepípedos na parte antiga do Recife, a qual era repleta de botecos escuros e com um desagradável cheiro de ralo, no entanto o que importavam eram as pessoas que freqüentavam o local, rockabillies em busca da cerveja barata. Em pouco tempo, Luana já não se encontrava mais sozinha, Paulo, Yanna e Jéssica, Fábio e João chegaram e todos se encontravam sentados no meio-fio discutindo o motivo da demora.

- Você tá louco, Fábio? Eu já havia dito que iríamos conseguir o copo de leite através do Mago, porque ele é mais confiável, e tu, caralho, devendo ao Recife todinho ainda se arriscou pra conseguir a merda pra gente. Querer também muita bala... Qualquer dia tu leva bala de verdade!

- Calma, mermão, eu to vivinho, tas vendo não? Me dá um abraço e vamos comemorar porque tudo deu certo e, hoje, a noite é uma criança! Traz aquela agüinha, amigo! – referindo-se ao dono do boteco, homem gordo, com uma fisionomia não muito simpática, um tanto anti-higiênico e impregnado pelo cheiro fétido do ambiente. O álcool era barato. E a rua estava lotada.

O clima era tenso, porque Fábio estava a cada dia mais viciado em pó, comprimido, injeção, drogas in general e, por isso, a compulsividade existente já bloqueava a percepção das conseqüências, e a idéia “sem dinheiro, sem drogas” não mais existia, assim, a dívida crescia e o seu rosto já não era bem visto pelos fornecedores da região. Naquela noite, todos queriam se reencontrar, esquecer as pressões da semana e se anestesiar um pouco. Fábio, então, resolveu ir em busca dos “caras”, conseguiu os elementos da felicidade, no entanto, depois, foi ameaçado, caso não soldasse a dívida... Sim, sim. Ele sabia, mas preferia fingir que esqueceu. Na verdade, o grupo de amigos, ainda colegiais, gostava das sensações provocadas pela noite recifense, mesmo com todo o cheiro, com toda a orgia, com toda a mistura, com todo o vômito, mesmo não, principalmente. Logo esqueceram do acontecimento de poucas horas atrás e já se entregavam ao ambiente, às combinações perfeitas.
Na parede esquerda do estabelecimento havia um quadro de um homem velho, com longos bigodes brancos, olhos vermelhos e emitindo uma risada enigmática, talvez sarcástica... Mas similar às risadas dos desesperados, perdidos ou loucos. Era essa imagem que Paulo e Luana observavam, elevadíssimos quanto à razão, consciência que nos conduz a agir conforme as nossas percepções de certo ou errado, e aos limites. Yanna e Jéssica se descobriam lentamente, de todas as formas... E os dois meninos programavam o local que iriam em, provavelmente, dois segundos. Casa de Fábio - o mais velho da turma, tentando o vestibular pela terceira vez - local ideal, pais ausentes, apartamento na parte superior de uma boate gay, isto é, som alto todas as sextas e sábados e a cada fim de semana um novo grupo a conhecer a “república estudantil”. 1, 2...
Não era necessário ligar o som, o DJ do térreo se encarregava, diríamos que muito bem, de regar a madrugada dessa forma. Todos sentados no chão da sala falavam assuntos ilógicos, via-se a ação desenvolvida muito mais pelo instinto, pois rugiam, gritavam como animais, como bichos em busca de satisfação. A cor era amarela. O quarto era abafado, ar não circulava, os vidros estavam pontilhados de gotículas de suor, o tapete era repleto de cinzas de cigarro. Estava tudo pronto, as misturas, os revezamentos se sucediam.
- É, cara. Até que foi bom tu ter arranjado hoje isso pra gente...

- Já? Rapaz... Isso é bom demais. Passa as pedriinhas, pedacinhos de rocha, é naturebaa!!

Tudo era motivo de risadas. Riam, riam. Era a felicidade, o oposto do que acontecia durante a semana, cobrança de estudos, exigências familiares, o inalcançável modelo de filho/aluno perfeito, enfim, desde a segunda esperava-se o fim de semana ansiosamente.

O som era alto, os gritos, os gemidos de prazer, os beijos-intensos, as formas se confundiam, as mesas viravam palcos, os pratos, lugares para o pó, a colher era a mini-panela, porque queimava na vela. O tapete era cama, não pra dormir, as drogas incitavam outras coisas. Amarelo. O quadro do louco. A rua estreita, claustrofóbica. As risadas. As intimidades veladas, agora reveladas. Virar bicha era o bicho. Antes cura para o mal dos sentimentos, agora veneno, veneno. Tudo se perdia...

Alguns dormiram, mas só no outro dia, já tarde da manhã, depois de doses, over doses: overdoses. Fábio havia trocado as faces, as linhas de divisão entre o conhecido e o enigmático. Não foi da forma imaginada no dia anterior, mas ainda sim conseqüência do vício.
O sol de Recife ainda brilhava e já havia secado o mijo e o ácido da noite anterior.

- Bárbara Buril

Um comentário:

Unknown disse...

interessante, algo que sempre pensei sabe, o ser humano, com toda sua ciência, parece menos racional que numca, ele abusa dos instintos de liderança ( lutar e derrubar outros por uma posição de destaque, no nosso mundo de adolecentes, sao os chamados playboys metido a pittyboys), e de instintos de sobrevivencia doentis ( egoismo, egocêntrismo, e por ai vai, numca se enxergou a si mesmo a cima dos outros tanto como hoje em dia). Concordo, é um grande problem do mundo de hoje, mas, o que fazer se não lutar contra isso tudo?